Hoje faz quatro anos que nascemos uns para os outros.
Foi parto com dor da espera, sem líquido de placenta, mas foi
água-vida tanta que hidratou a secura de todos nós.
Eles não chegaram sozinhos, havia uma história com eles, havia a
deles e a nossa, havia os "teus-meus" que precisavam se transformar
em nossos e em nós: nós e todos os outros. A filha trazia fragmentos de uma
lembrança aqui outra acolá, o jeito foi misturar as vidas: as nossas e as
deles, sem desrespeito aquilo que foi vivido até esse encontro, ao contrário de
muitos, sempre acreditamos que eles não precisavam se curar de nada e nós tão
pouco, era só um novo começo e ninguém precisava se curar de ninguém.
Deixávamos ela falar sobre tudo o que tinha vivido até ali, o que nos
preocupava era o silêncio, pois a mudez guarda sótãos inteiros, ela tinha só
três anos e meio e já tinha vivido tantas tristezas, parecia ignorar todas elas e com sua voz de menina-bebe disse ao juiz: "a partir de agora é pai novo, mãe nova, vida
nova" e disse isso feliz, nós sabíamos que apesar da sua fala a vida de
todos que ela havia convivido até ali corriam dentro dela, desordenadamente,
mas corriam. Ele tinha apenas oito meses e suas pequenas-grandes vivências
foram de dor, mas ele soube ser tão resiliente e tão feliz, ainda é.
Somos tão gratos a chegada-nascimento, foi como se disséssemos
sim para a vida e déssemos permissão para ela continuar nesse fluxo lindo que é
o fluxo do amor. Um amor de verdade, do fundo da alma e do peito, um amor livre
que se permite errar e ser perdoado, porque mesmo o amor ignora uma imensidão
de coisas.
Ser grato ao amor e
alargá-lo pelos quatro cantos do mundo todos os dias em pequenas ações, nos
fortalece, nos une, não temos pudor nenhum em gritar que somos gratos pelo nosso
encontro, que somos melhores depois dele, é coisa escrita, não tem jeito, não
costumamos guardar momento de felicidade, ao guardá-lo corremos o risco de
estreitá-lo, gostamos todos nós da imensidão, do agigantamento e da força que
um sentimento bom pode ter, não somos do tipo que vai vivendo aos poucos,
gostamos mesmo é da intensidade de tudo. Vivemos a hora da felicidade com
entrega e já fabricando a outra que pode ser ainda mais feliz ou não. Como
dizemos por aqui: comemos a vida com gosto e fome e arquivamos as coisas na
memória. O nosso nascimento-chegada-pertencimento-graça é até agora o que
vivemos de maior, num descuido nos descobrimos mais completos, sentimentos como
zelo, afeto, perdão, compaixão, liberdade e respeito têm nos norteado nesse caminho
lindo e difícil de ser pai, mãe e filhos, não sabemos um mundo de coisas,
muitas delas nem cabem nas nossas vivências.
O amor é parceiro inseparável de todos os dias, é ele que acalma
os ânimos do descontentamento, da raiva, da dúvida e do cansaço. Quando tudo dá
errado (temos muitos dias assim), recorremos ao amor, ele é remédio que cura, e
nem sempre tem gosto doce, o amor as vezes parece bem azedo, mas precisa ser
engolido e só lá na frente entenderemos o porquê do azedume, já a cura não se
trata de felicidade dia e noite, é felicidade sofrida, conquistada, trabalhada
diariamente numa infância livre, numa alimentação saudável, no respeito ao
mundo e toda a sua diversidade, na educação libertadora, no contato mais de
perto com o que é espiritual, no contato mais de longe com o que é material, no
amor pela natureza e todas as suas espécies, no amor pelo outro, é perrengue
todos os dias, as vezes não consigo se quer atender um telefonema, muitas vezes
fomos dormir as duas da madrugada e acordamos as seis, já fiquei horas
segurando os olhos abertos só porque a filha me contava uma coisa julgada por
ela de extrema importância, já revezamos a guarda numa noite de febre, já
ficamos os dois acordados zelando pela melhora de uma infecção de garganta, já
enfrentamos gentes que nos chamam de “caridosos”, deixamos de sair inúmeras
vezes para ficar com eles, já escutamos tanta bobagem em nome do “só quero
ajudar”, já tivemos que explicar uma, duas, três, dez vezes que eles são nossos
filhos e que chegar também é nascer, já choramos incontáveis vezes
nesses quatro anos, choramos de doçura e de azedume, de alegria e de medo.
Somos basicamente felizes, mas não ignoramos a infelicidade do
outro, todos os dias buscamos evoluir em cada coisa dita, feita e vivida, não seguimos
alheios ao desamor, ao descontentamento e a desesperança do mundo, porém em
alguns casos construímos muros mais altos, criamos rios e margens, evitamos os
cantos muito escuros, mas se for preciso enfrentamos e mostramos aos filhos que
eles existem. Descobrimos nesse processo de educar que para mantermos mais
saudáveis nossas emoções, precisamos de um certo distanciamento de algumas
coisas, pelo menos até eles terem certeza em qual lugar no mundo eles querem
estar, nós pais por ora queremos estar ao lado deles, viver cada dia sem correr
para o dia seguinte, sem pressa que lhes chegue a adultez, cada instante com
eles é grande tanto, é tão bom e tão desafiador, cada vez que abraço meus
filhos sinto o amor latejando entre nós, imaginem isso vivido intensamente
durante quatro anos, é gratidão.
Acredito que sempre precisamos de um outro para irmos além de
nós mesmos, foi isso que nossos filhos fizeram: nós levaram além.
Somos imensamente gratos por tudo o que temos vivido, a mansidão
e as turbulências, as certezas e as dúvidas... um sentimento completando o
outro.
Nossa gratidão é um recado de amor escrito a quatro mãos (e
outras tantas) para Deus, para o universo, para a vida passada e futura.