A Vida Acontece o Tempo Todo



18 de outubro de 2019





A vida é a qualquer hora, a vida acontece o tempo todo.
Assim como a construção do vínculo entre pais e filhos.
Muitas vertentes da parentalidade ou pessoas que acreditam ter a certeza absoluta das coisas, escrevem e ditam regras sobre onde quando e como nasce o vínculo entre pais e filhos. Defendem que esse portal se abre somente no parir e no amamentar. Desconhecem outras fontes de criação do amor e escrevem ou dizem tantas "inverdades" (acredito eu que baseadas nas suas verdades, mas meus caros: verdade tem tantas versões) que acabam criando culpas em pessoas que vivem e viveram outras coisas, diferente das delas.
Me assusta um pouco a quantidade de "especialistas" que andam a se formar, há especificidade para quase tudo nessa vida, me deixa confusa se de fato podemos nos transformar em especialista emocional em uma formação de dois dias, não quero desmerecer nada e ninguém, são questionamentos muito singulares.
Para além de se pensar que o vínculo já se dá automaticamente no nascimento do filhos, penso que ele é construído. 
Nossos filhos nasceram longe, nós, os pais nem sabíamos o que estava acontecendo no dia do nascimento de cada um. Nasceram nossos filhos a nossa revelia, como pode os filhos nascerem sem que os pais saibam? A minha resposta aborda justamente o poder e a força do vínculo construído. A nossa história juntos iniciou assim e sabíamos que o vínculo parental se construiria e se fortaleceria a partir da nossa convivência. 
A gestação ou a espera por um filho é muito significativa, sem dúvida, mas o fato de apenas parir ou ser mãe e pai não nos garante vínculos de qualidade, precisamos do desejo de tê-los, precisamos buscá-los. E fazemos isso no dia a dia, num toque, numa escuta, num diálogo e até num silêncio.

Nosso filhos não chegaram sozinhos, havia uma história com eles, havia a deles e a nossa, havia os teus e meus que precisavam se transformar em nossos e em nós, nós e todos os outros. O jeito foi misturar as vidas, as nossas e as deles, sem desrespeito àquilo que foi vivido antes desse encontro, sempre acreditamos que eles não precisavam se curar de nada e nós tão pouco, era só um novo começo e ninguém precisava se curar de ninguém. Deixávamos nossa filha falar, se quisesse, sobre o que tinha vivido até ali, pois a mudez guarda sótãos inteiros.
Eles estavam chegando ao desconhecido, mas queriam muito chegar. E nós somos tão gratos a essa chegada-nascimento, foi como se disséssemos sim para a vida e déssemos permissão para ela continuar num novo fluxo, o do amor. Era imenso o que já havíamos vivido, e mesmo o amor, as vezes, ignora uma imensidão de coisas, mas nós não podíamos ignorar. Estávamos todos vivendo uma transformação, um deslocamento corpóreo e emocional. Era externo e interno, tínhamos que rever crenças, verdades e afirmações que antes cabiam, agora não mais. Ouvir, falar, se deslocar, se pronunciar, não sustenta a mudança, o que sustenta é vivê-la. Precisávamos todos nos autorregular e entender que cada indivíduo dessa nova família era único e como tal iria agir no mundo, sem comparações, sem tabelas de desenvolvimento, a propósito, sobre o desenvolvimento da nossa filha, até seus três anos, não sabíamos nada: como foi sua chegada ao mundo, quanto pesou e mediu. Validávamos seus sentimentos e ela validava os nossos e isso nos configurava mãe e pai da filha. 
O amor se alargava e nos unia, fortalecia em nós a unidade. Nos entregamos a cada momentinho feliz que descobríamos juntos, não queríamos guardar momento de felicidade, ao guardá-lo corremos o risco de estreitá-lo, gostamos todos nós da imensidão, do agigantamento e da força que um sentimento bom pode ter, não somos do tipo que vai vivendo aos poucos, gostamos mesmo é da intensidade. Vivemos a maternidade e a paternidade com entrega. O topo mais alto é o que dá mais medo, mas é de onde enxergamos mais longe e no qual a gente fica mais pequeno. Foi e é nessa intensidade e entrega que construímos nossos laços, nossos vínculos. 

As vezes seguro os olhos abertos, mesmo morrendo de sono, porque a filha me conta uma coisa que ela julga de extrema importância; revezamos a guarda numa noite de febre; ficamos os dois acordados zelando pela melhora de uma infecção de garganta; falamos dos nossos sentimentos e dos nossos limites para nossos filhos;  os escutamos ativamente; os abraçamos e beijamos com amor; fazemos coisas juntos; os respeitamos; validamos seus sentimentos; os cuidamos. Eles sabem que não são apenas os pais que se doam, acreditamos sim,  que os pais os protegem, os cuidam, os orientam, doam seu tempo e seu amor para construir laços importantes e definitivos para que seus filhos sejam adultos mais confiantes, seguros, resilientes,corajosos e amorosos, mas acreditamos também que os filhos exercem importantes papeis na edificação das relações parentais, e para nós é fundamental que em suas fases de desenvolvimento adequadas, eles adquiram consciência da importância do seu papel e das responsabilidades na construção do vínculo, é amor, respeito, escuta, comunicação respeitosa, entre outros sentimentos que são maiores e mais significativos justamente porque são mútuos.
Não me parece que só em ter filhos já nos tornamos aptos a sermos bons pais, é uma jornada longa de erros e acertos, de aprendizado e dedicação, como é também de cansaço e culpas, de imperfeição e conquistas, se dar conta disso já é um passo significativo para o caminho do meio, o caminho do equilíbrio.
Ninguém salvou ninguém de nada, os primeiros dias foram basicamente felizes, não ignoramos a saudade que, as vezes, ela sentia dos pais biológicos, não seguimos alheios ao desamor que eles haviam vivido, a desesperança que principalmente ela tinha em relação ao mundo. Tentamos criar rios e correntezas para essa desesperança ir embora, não evitamos os cantos escuros que vez ou outra sentíamos que ela visitava, a pegávamos pela mão e enfrentávamos aquele escuro juntos.

Penso que sempre precisamos de um outro para irmos além de nós mesmos, foi isso que nossos filhos fizeram, nos levaram além, e acho que fizemos isso com eles também.  O início dessa história foi ora mansidão, ora turbulência, ora tristeza e ora alegria, um sentimento completando o outro. Teve muita fala e muita escuta, e teve silêncio, era também no silêncio que nos conhecíamos, que iniciávamos uns nos outros. O silêncio não matava nenhuma palavra, ele as completava, ele falava para dentro. 
Eu aprecio o silêncio, acho coisa de fácil entendimento, eu costumo interpretá-lo bem, já errei feio, mas em geral o entendo, acho que aprendi lá na infância, quando me soube e me senti amada sem que  me falassem “eu te amo”, o silêncio foi a minha língua mãe, e nele também construímos vínculos, porque as palavras eram substituídas por ações. Me sinto de verdade honrada em saber ouvi-lo. 

Penso que se a gente tentar usar palavras para traduzir o que o silêncio diz corremos um sério risco de nos perder, é tentar dizer o indizível. Ouvir o silêncio é aprender a ler os sentidos todos do corpo.s palavras saem de nós feito roupas já usada, o acontecer nos veste por dentro.

Tentamos ensinar aos nossos filhos que há qualidades humanas a serem aprendidas durante a vida, e que o amor e a construção sólida de uma arquitetura emocional  empática é capaz sim de suprir necessidades antes não supridas, acreditamos que esses estados amorosos e respeitosos dão espaço e solidez a uma forte vinculação. 
A empatia nos permite perceber as referências internas do outro, os sentimentos e as emoções que o habitam, e apesar de podermos perceber tudo isso ainda temos a consciência que se trata do sentimento dele e não nosso, o que nos cabe fazer é nos importarmos. 




Pela minha história, pelo que percebo, pelo que sinto, vivo e acredito, a qualidade e a fortaleza dos vínculos são construídas nas vivências e experiências que acontecem nas relações, e isso pode se dar independente dos fantasmas do passado, independente da forma como nascemos. O que nos ajuda a regular melhor nossas emoções internas, desfazer nós e criar laços com os olhos e peito abertos para o presente e para o futuro são as relações que construímos, não posso acreditar que só o parir nos defina, ou que a forma como fomos nutridos seja nosso destino. 
Não enxergo coisa mais linda do que construir o vínculo com nossos filhos lhes ensinando os sons dos pássaros, os nomes das árvores, contando histórias dos artistas mais importantes do mundo ou fazendo pão a quatro ou oito mãos.
A vida é a qualquer hora, a vida acontece o tempo todo.


Rosane Castilhos

5 comentários:

  1. Rosane, impossível te ler e não nos emocionar contigo, com essa história toda! E, sem dúvida, a vida acontece o tempo todo, só não vê e percebe quem não quer!!! beijos, lindo fds! chica

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  2. Essa construção dia após dia, a cada momento, com sorrisos, com turbulências é o que fortalece nossos vínculos. Eles não nascem prontos; não é peito ou mamadeira que o definem.
    Lindo de viver esse texto!
    Beijo
    Ana Paula

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  3. Todas as relações são construídas a partir da vontade, da dedicação, da entrega, do aprendizado... A maternidade é a que mais cobra e a que mais gratifica, penso eu. Coração transborda, tudo faz sentido...

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  4. Como estão lindos!!!
    Que emoção poder ler seus textos novamente, sem a turbulência das redes sociais. Um beijo. Agradecida pelo comentário lá no meu blog

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  5. Ainda há pouco eu estive lá no "condomínio instagram" como você gosta de falar! E acho que soprou uma brisa de saudade desse outro cantinho que é bem mais afastado e silencioso do que o grande condomínio. Tudo o que você falou lá, reencontrei aqui - amor. Seja em que fase for que as crianças estejam, amor sempre.
    Sempre bom te ler!
    Um beijo querida
    ana paula
    @retrateria

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