Oi filha, eu estou te vendo




         22 de fevereiro de 2018






Oi meu amor.
Eu estou te vendo, te observando, te escutando, te cuidando mesmo que as vezes minha manifestação mais viva e intensa esteja meio desnorteada.
Tanta coisa aconteceu desde que vocês chegaram que eu nem me lembro como eu era da última vez que estive sem tê-los. Tantas mudanças, tantos devaneios e retomadas de consciência fizeram e fazem parte dessa montanha russa chamada maternidade.
As vezes pareço imersa nos estudos e nas minhas pesquisas sobre o comportamento do seu irmão e de como amenizar "as diferenças", pareço completamente imersa na vida dele, e de verdade estou, mas meu mergulho na sua vida é real e intenso também, talvez no seu mar eu suba mais a superfície, talvez o meu mergulho em ti seja mais fácil ou menos profundo, mas nunca menos amoroso.




Teu irmão te ama tanto, vocês se amam tanto, as vezes fico olhando vocês dois juntos e choro de amor, imagino que não seja fácil pra ti entender que as vezes precisamos sair antes do previsto de um evento porque seu irmão já não tolera mais ficar ali, mesmo assim tu diz SIM e vocês saem juntos, de mãos dadas, porque ele nem imagina te deixar. Eu e seu pai estamos aprendendo a mergulhar no oceano do Enzo, tu já é um peixinho, ele te abraça, faz onda-amor pra te ver nadar junto dele. Obrigada minha filha por tanto amor. 
Eu? Ora estou aqui na superfície, ora estou no fundo do mar das nossas vidas aprendendo sobre nossa existência e tentando trazer a tona tudo de bom que esse mundo nos dá, da mesma forma que tento enfrentar as coisas ruins que surgem porque fazem parte da nossa condição humana.
Nossa vida é tão bonita, somos tão felizes, nos amamos tanto.
Sei bem que as vezes travo uma luta interna e fico meio longe, me deixo levar pela turbulência do mar. Eu sei que cada braçada dada vale a pena, que enfrentar a onda é muito melhor do que deixar que ela me leve, no entanto as vezes preciso ir, sem braçada alguma, só ir... pra depois voltar.  Eu que me acho emocionalmente independente do que os outros pensam e julgam a meu respeito, as vezes, me percebo dando crédito a julgamentos tolos que só fazem doer no peito,  fico desatenta de ti porque me perco nesse devaneio de mudar o mundo conforme o que acredito. Se eu não aprendi, quero muito que tu aprenda: aos outros só podemos levar amor e as mudanças que achamos necessárias se darão a partir desse amor que reverbera e contagia.
Eu, mãe, sempre encho a boca para falar a palavra liberdade, mas exijo sempre que sejam super educados. Sabe de uma coisa: nem sempre dá pra ser, as vezes, só as vezes (risos) a falta de educação nos salva de alguns caldos, de algumas ondas que nos derrubam porque preferimos ser educados como "a mãe e o pai nos ensinaram", ou ainda "como a mãe e pai esperam que a gente seja", na verdade a liberdade mais linda é aquela quando olhamos para nossos filhos e os vemos como outros e não como uma cópia de nóse a pesar das diferenças e por causa delas amá-los mais que tudo. 
Vou tentar não planejar tudo, viver sem tantas preocupações, sem tantos métodos, vou tentar apenas estar ali de corpo e alma e desfrutar a vida junto contigo de forma mais intensa, porque tu recarrega minha energia e me potencializa como mãe, eu escuto muito a voz da minha infância em ti, dou importância ao que a menina que mora dentro de mim me diz, e ela salta de felicidade, faz meu peito vibrar, me movimenta pra estar mais presente e mais brincante contigo. Mas é preciso que saiba, há uma essência em mim que não pode ser iludida ou mascarada, sou essencialmente estudiosa, intensa, mergulho de cabeça no que acho que preciso mergulhar, mas eu volto filha, sem mentiras, sem desculpas, porque se não for desse jeito estarei enganando a mim mesma e estarei mentindo pra vocês e não conheço ninguém que tenha conseguido criar filhos felizes vivendo uma mentira. 
Então, eu prometo estar mais no presente, vivendo cada minuto com entrega, mas as vezes preciso ir lá no fundo, trancar o ar, me esvaziar pra poder voltar a superfície com força, coragem e o mesmo amor de sempre.
Te prometo perder menos tempo com essa mania pretensiosa de mudar aquilo que, por ora, não pode ser mudado, faço isso por acreditar ser essa a via de construção de um mundo melhor pra ti, pro teu irmão, pra todos. Talvez eu faça isso por medo de estar longe no "futuro", fico achando que posso deixar o terreno pronto, sem torrões de dor que são difíceis de arrancar, fico nessa tentativa tola de deixar o mar calmo, de segurar os maremotos que poderão surgir mais tarde. Eu prometo gastar esse tempo e essa energia mais no presente do que num futuro imaginado, porque é o aqui e o agora que poderá garantir pra vocês um ali e lá mais feliz. Não posso te prometer um mar tranquilo, mas prometo me jogar menos na água turbulenta, vou enfrentar só as ondas que nos impulsionarem para uma maré bonita.




Filha estou aqui, sempre estive, mesmo que eu pareça distante (e algumas vezes estou) quero que saiba que um pedaço meu sempre fica perto de ti. Eu nasci pra estar contigo, nos encontramos pra isso. Teu irmão, talvez precise mais de mim (esse talvez é carregado de dúvidas, eu mãe acho que seja assim, mas pode ser que não, pode ser que tu precise muito mais de mim, mas entenda, as mães erram descaradamente achando que estão certas, a gente tem essa coisa do "sentir"), então repito o que não tenho certeza, mas por ora sinto: TALVEZ teu irmão precise mais de mim, por isso olho tanto pra ele, mas meu olhar é teu também, sempre foi. Tu não é um capítulo, tu é o livro todo, tu não é uma onda, tu é também um oceano e eu mergulho em ti com todo o amor que carrego no meu peito desde o dia que tu correu para os meus braços gritando: "chegou minha mãe!". Te amo.


Sua Mãe



Gratidão (nascimento - chegada - pertencimento - graça)




Hoje faz quatro anos que nascemos uns para os outros.

Foi parto com dor da espera, sem líquido de placenta, mas foi água-vida tanta que hidratou a secura de todos nós.
Eles não chegaram sozinhos, havia uma história com eles, havia a deles e a nossa, havia os "teus-meus" que precisavam se transformar em nossos e em nós: nós e todos os outros. A filha trazia fragmentos de uma lembrança aqui outra acolá, o jeito foi misturar as vidas: as nossas e as deles, sem desrespeito aquilo que foi vivido até esse encontro, ao contrário de muitos, sempre acreditamos que eles não precisavam se curar de nada e nós tão pouco, era só um novo começo e ninguém precisava se curar de ninguém. Deixávamos ela falar sobre tudo o que tinha vivido até ali, o que nos preocupava era o silêncio, pois a mudez guarda sótãos inteiros, ela tinha só três anos e meio e já  tinha vivido tantas tristezas, parecia ignorar todas elas e com sua voz de menina-bebe disse ao juiz: "a partir de agora é pai novo, mãe nova, vida nova" e disse isso feliz, nós sabíamos que apesar da sua fala a vida de todos que ela havia convivido até ali corriam dentro dela, desordenadamente, mas corriam. Ele tinha apenas oito meses e suas pequenas-grandes vivências foram de dor, mas ele soube ser tão resiliente e tão feliz, ainda é.
Somos tão gratos a chegada-nascimento, foi como se disséssemos sim para a vida e déssemos permissão para ela continuar nesse fluxo lindo que é o fluxo do amor. Um amor de verdade, do fundo da alma e do peito, um amor livre que se permite errar e ser perdoado, porque mesmo o amor ignora uma imensidão de coisas. 

Ser grato ao amor e alargá-lo pelos quatro cantos do mundo todos os dias em pequenas ações, nos fortalece, nos une, não temos pudor nenhum em gritar que somos gratos pelo nosso encontro, que somos melhores depois dele, é coisa escrita, não tem jeito, não costumamos guardar momento de felicidade, ao guardá-lo corremos o risco de estreitá-lo, gostamos todos nós da imensidão, do agigantamento e da força que um sentimento bom pode ter, não somos do tipo que vai vivendo aos poucos, gostamos mesmo é da intensidade de tudo. Vivemos a hora da felicidade com entrega e já fabricando a outra que pode ser ainda mais feliz ou não. Como dizemos por aqui: comemos a vida com gosto e fome e arquivamos as coisas na memória. O nosso nascimento-chegada-pertencimento-graça é até agora o que vivemos de maior, num descuido nos descobrimos mais completos, sentimentos como zelo, afeto, perdão, compaixão, liberdade e respeito têm nos norteado nesse caminho lindo e difícil de ser pai, mãe e filhos, não sabemos um mundo de coisas, muitas delas nem cabem nas nossas vivências.

O amor é parceiro inseparável de todos os dias, é ele que acalma os ânimos do descontentamento, da raiva, da dúvida e do cansaço. Quando tudo dá errado (temos muitos dias assim), recorremos ao amor, ele é remédio que cura, e nem sempre tem gosto doce, o amor as vezes parece bem azedo, mas precisa ser engolido e só lá na frente entenderemos o porquê do azedume, já a cura não se trata de felicidade dia e noite, é felicidade sofrida, conquistada, trabalhada diariamente numa infância livre, numa alimentação saudável, no respeito ao mundo e toda a sua diversidade, na educação libertadora, no contato mais de perto com o que é espiritual, no contato mais de longe com o que é material, no amor pela natureza e todas as suas espécies, no amor pelo outro, é perrengue todos os dias, as vezes não consigo se quer atender um telefonema, muitas vezes fomos dormir as duas da madrugada e acordamos as seis, já fiquei horas segurando os olhos abertos só porque a filha me contava uma coisa julgada por ela de extrema importância, já revezamos a guarda numa noite de febre, já ficamos os dois acordados zelando pela melhora de uma infecção de garganta, já enfrentamos gentes que nos chamam de “caridosos”, deixamos de sair inúmeras vezes para ficar com eles, já escutamos tanta bobagem em nome do “só quero ajudar”, já tivemos que explicar uma, duas, três, dez vezes que eles são nossos filhos e que chegar também é nascer,   já choramos incontáveis vezes nesses quatro anos, choramos de doçura e de azedume, de alegria e de medo.   

Somos basicamente felizes, mas não ignoramos a infelicidade do outro, todos os dias buscamos evoluir em cada coisa dita, feita e vivida, não seguimos alheios ao desamor, ao descontentamento e a desesperança do mundo, porém em alguns casos construímos muros mais altos, criamos rios e margens, evitamos os cantos muito escuros, mas se for preciso enfrentamos e mostramos aos filhos que eles existem. Descobrimos nesse processo de educar que para mantermos mais saudáveis nossas emoções, precisamos de um certo distanciamento de algumas coisas, pelo menos até eles terem certeza em qual lugar no mundo eles querem estar, nós pais por ora queremos estar ao lado deles, viver cada dia sem correr para o dia seguinte, sem pressa que lhes chegue a adultez, cada instante com eles é grande tanto, é tão bom e tão desafiador, cada vez que abraço meus filhos sinto o amor latejando entre nós, imaginem isso vivido intensamente durante quatro anos, é gratidão. 

Acredito que sempre precisamos de um outro para irmos além de nós mesmos, foi isso que nossos filhos fizeram: nós levaram além.

Somos imensamente gratos por tudo o que temos vivido, a mansidão e as turbulências, as certezas e as dúvidas... um sentimento completando o outro.

Nossa gratidão é um recado de amor escrito a quatro mãos (e outras tantas) para Deus, para o universo, para a vida passada e futura.






Escolhas



Querer criar galinhas no quintal de casa, fazer seus próprios brinquedos, seu alimento, fazer festa de aniversário infantil com bolo integral, frutas, sem refrigerantes e sem balas, bandeirinhas pelo quintal, com gente de pés descalços, sem presente algum, trazendo nas mãos apenas a vontade de estar junto. Nenhuma menina vestida de mini adulta ou de "princesa da Disney", nenhum menino com a roupa do homem de ferro ou armas de brinquedo, as fantasias todas feitas a mão e por eles mesmos. O parabéns pra você cantado em uma dança circular com o aniversariante e sua família ao centro da roda recebendo todo o afeto direcionado a eles, os adultos sem preocupações de que as crianças se machucassem nos brinquedos modernos (eles não existiriam nessa festa), a brincadeira construída: corrida do saco, bolha de sabão, caça ao tesouro, esconde esconde, amarelinha, pega pega, pintura, modelagem, cantos e danças. Sem lembrancinhas com balas, doces e brinquedos, a lembrança poderia ser algo construído pelo aniversariante, ou: nada, a não ser um abraço caloroso e a memória afetiva daquele momento. Nenhuma monitora responsável pela maquiagem ou pintura nas unhas das meninas, as meninas com roupas confortáveis e de criança para subirem nas árvores ou correr, correr e correr.




Acredito num mundo onde as crianças pareçam crianças, se sujem, brinquem, corram, pulem, subam em árvores, se machuquem, consigam passar uma tarde brincando juntas sem celulares e sem brinquedos eletrônicos, crianças capazes de suportarem as frustrações sem ganhar nada em troca por conta disso, acredito numa escola que não ofereça recompensas (pirulitos, balas, brindes) só por que a criança fez o deveria ter feito, creio num mundo onde os pais tratam as crianças como crianças sem se preocuparem precocemente com o vestibular que seus filhos farão, "ninguém nasce pra fazer vestibular, a gente nasce pra ser feliz" (filme Tarja Branca), claro que quero que meus filhos e todas as crianças do mundo cheguem a universidade, o conhecimento adquirido é importante e transformador. Acredito numa educação e numa pedagogia holística em um dos mais amplos sentidos que se pode dar a essa palavra. Desenvolver desde criança os pontos de vista:  físico, anímico e espiritual, de forma progressiva e afetiva, cultivando o AGIR, o SENTIR e o  PENSAR, explorando o sensorial, o emocional e o pensamento concreto, para mais tarde explorar com facilidade o abstrato. Viver e sentir para depois pensar sobre o que se viveu e sentiu.




Conversando com a mãe de uma colega da minha filha ela me disse: "vocês ainda não foram para a Disney com essas crianças menina, tão esperando o quê?? daqui a pouco é tarde, eles vão perder o encanto pelas princesas, pelos personagens, vai ficar tudo mais chato, por favor, providencia isso, principalmente para a Raquel, ela é uma menina, vai enlouquecer com o castelo, tu vai ver como ela vai ser mais feliz..." Eu educadamente (as vezes queria ser menos) lhe respondi que tinha entendido sua opinião se ela não tivesse acrescentado que minha filha "seria mais feliz" se fosse para a Disney, lhe disse também que eu nunca tinha ido para a Disney e que meus pais mal sabiam que já existia o Mickey e toda a sua trupe, que eu nunca tive nenhuma das princesas e que nunca fui infeliz por isso, na verdade, do que eu gostava, quando criança, era de brincar de fazer comidinha de barro e mato com a minha irmã e de descer de carrinho de lomba com meus irmãos num morro que tinha perto da nossa casa. Ela ficou meio desconcertada, mas insistiu: "eram outros tempos Rosane, pelo amor de Deus, que criança ainda faz comidinha de barro?" Eu: as minhas!! Ela deu um sorriso amarelo e completou: "desisto de ti!" 
Fiquei pensando se eu seria uma pessoa de se desistir, o que estaria atrás dessas palavras? 
Claro que meus filhos não vivem apenas no meio do mato, nem tão pouco só brincam com barro e folhas, eles têm acesso a tecnologia sim, vamos em shopping (muito pouco), comemos bobagens (as vezes), eles conhecem os personagens da Disney (de passagem) e nem gostam muito deles, assistem TV (mais músicas do que filmes e desenhos), mas ainda não foram para a Disney, talvez irão, não sei, preferiria fazer uma safári na África ou explorar a Patagônia. Acontece que cada pai, mãe, vó, tia ou qualquer outro membro da família educa e pensa de um jeito, somos todos pensantes diferentes e não seria capaz de dizer a ninguém: "eu desisto de você".
Acho que ninguém, ou quase ninguém, tem a intenção de educar uma criança para a infelicidade, o que ocorre é que temos conceitos diferentes da FELICIDADE.






Oferecer aos filhos um punhado de galhos de árvores para que eles construam um material de contagem e de cores frente a tantas ofertas desse material no mercado, modelos lindos, incríveis, duradouros e coloridos parece coisa de "pais bicho grilos" e para os olhos de algumas pessoas seus filhos não evoluirão nesse mundo competitivo e rápido que é o nosso. Mas de verdade AGORA eu não penso muito em concorrências ou progresso, penso mesmo que é hora de aprender brincando, construindo e criando, e se puder fazer tudo isso sem prejudicar a vida na terra e suas espécies, muito melhor. Os elementos naturais trazem um lado sensorial maravilhoso para quem lida com eles, têm cheiro, textura, formas diferentes e são lindos, temos muito pelo nosso quintal e pomar, eu seria uma tola se não os explorasse. Fazemos nossa própria massa de modelar, com mais textura e mais cheirinho, só para exercitarmos os sentidos do corpo e da alma, construímos nossas fantasias e chapéus, alguns brinquedos e bolas, fizemos nosso próprio sabão para as bolinhas de espuma e não fazemos isso para "poupar dinheiro", se bem que isso também é importante e pensado, mas não é nosso primeiro impulso, o que esperamos com isso é que nossos filhos valorizem mais o fazer junto, o afeto e respeito que isso envolve. 






A brincadeira preferida por aqui é se sujar nas poças de lama que se formam pelo pomar depois de um dia de chuva, o prato preferido não é o do fast food famoso, o lugar preferido é lá fora no meio das árvores e do lado da cachorrada se rolando no chão e dando beijo em todos, a viagem sonhada não é pra Disney, as vezes a viagem mais desejada é ir na casa da vó, essa sim tem um valor enorme e é capaz de nos deixar mais felizes, somos assim, em especial: eu sou assim, mas não julgo como errado o jeito que cada um escolhe para educar os seus, apenas acredito no que nós escolhemos, na verdade sem nenhuma certeza absoluta e imutável de que seja o melhor, por ora é esse o caminho que queremos caminhar, errando, acertando, experimentando e colocando REPARO NA VIDA, na nossa e na dos outros, todos os outros: humanos, animais, vegetais, enfim todas as espécies. Tentamos educar nossos filhos para um mundo de amor e de respeito, porque acreditamos no amor e no respeito.
 


 







E muito diferente o que você sente do que a sociedade acha que você tem que sentir, o importante é olhar para dentro de si, sem tanta culpa, sem tantas amarras e apegos a aquilo que nem acreditamos.


Grata pelo carinho, respeito e por vocês estarem aqui.


O amor cura antes mesmo de se diagnosticar as feridas




3 de maio de 2016




Eu não sabia muito bem por onde começar a escrever esse texto, tinha medo, pois entre quem escreve e quem lê existe um distanciamento, falta o olho no olho, e nesse vazio podem se estruturar rótulos, interpretações erradas e até mesmo expectativas falsas, mas precisava escrever, quando escrevo as palavras saem de mim, dão a volta no mundo, ecoam e voltam transformadas, ou ainda mais: melhoradas. Pois bem, passei um café e cá estou de coração aberto.
Nosso filho, o Enzo, não se adaptou a escola, tentamos, por vinte dias, levá-lo, acompanhá-lo, incentivá-lo, a escola por lá fazendo sua parte, percebo que as escolas de um modo geral estão despreparadas para o "diferente" ou para o ainda não vivido, os profissionais têm pouco manejo e muita falta de conhecimento. Ele voltava da escola entristecido e meio assustado. Cada vez que eu ia buscá-los ele corria para meus braços me abraçava forte e dizia meio suspirando: "a mãe me buscou, a mãe me buscou!!" Dizia isso com alguém que estava com medo de que isso não fosse acontecer: "o buscar". Eu chorava escondida, pois sentia que ele estava sofrendo.
Nosso pequeno sempre teve um desenvolvimento normal, andou no  tempo esperado, falou no tempo esperado, sorria muito, se comunicava com olhares, choros e balbuciou, olhava-nos nos olhos, sempre nos chamou atenção sua afetividade, ele é extremamente afetivo com todos, sem distinção.
Percebíamos que nosso filho se diferenciava em alguns aspectos: aprendeu o alfabeto (em português e inglês) com dois anos e três meses, as cores, as formas, os numerais vieram logo em seguida, também nas duas línguas, hoje aos quatro anos ele fala e sabe o significado de mais de cem palavras em inglês, reconhece cores, números, letras, formas, canta centenas de músicas, reconhece e nomeia corretamente objetos que nós adultos as vezes nem sabemos pronunciar, fala as palavras de forma correta, os plurais, é educado, usa as palavras de gentileza com todos, AMA incondicionalmete os animais, sua "cachorrada" então... corre, dança, pula, etc, no entanto se recusa a deixar a mamadeira, essas coisas me chamam atenção, pois além de atenta já trabalhei com educação e desenvolvimento infantil por tanto tempo e tive dez anos de aprendizado e envolvimento na área da educação especial. 
Construímos um ambiente propício para o desenvolvimento tanto dele quanto da nossa filha Raquel, desde que eles chegaram há quase quatro anos minha dedicação a eles é total, realizamos muitas coisas, principalmente na área das artes: visual, música, teatro e dança, também e com total importância falamos muito sobre o planeta e tudo o que nele vive: todas as espécies, sem distinção, sem esquecer nenhuma, da formiga ao ser humano, tudo e todos são respeitados por nós, as letras e todo o resto vieram junto, essa é a nossa melhor parte: brincamos e aprendemos em meio as tintas, as músicas e a natureza. No meio de tudo isso íamos percebendo que o Enzo se diferenciava de algumas crianças da mesma idade que ele, cientes de que cada um se desenvolve de um jeito e no seu tempo, levamos isso em conta sempre, mas haviam algumas coisas que nos chamavam a atenção, principalmente em seu desenvolvimento psíquico, enquanto seu lado intelectual avançava de forma surpreendente, percebíamos que alguns aspectos básicos do desenvolvimento infantil pareciam ser mais difíceis para ele, como por exemplo: vestir-se sozinho ou escovar os dentes, ele não apresenta dificuldade motora, mas não se concentra no fazer e a ansiedade impedi que realize essas coisas com exito e acaba se frustrando. Observamos também que sua linguagem apesar de rica em vocabulários, se restringe em alguns momentos, de novo a ansiedade, e acaba repetindo frases aleatoriamente, além disso o seu interesse específico por determinadas coisas: música, instrumentos musicais, livros, máquinas de todos os tipos (aparelhos eletrônicos a eletrodomésticos) nos intriga. O que de fato me deixa mais preocupada é que ele faz muito pouco a brincadeira simbólica, a exploração do brinquedos é mais especulativa, a curiosidade comanda o brincar, por outro lado ele explora o simbolismo e brinca muito quanto nos fantasiamos de outros personagens, basta colocar um chapéu e a brincadeira começa de forma linda e criativa. Tudo isso e mais nos levaram a procurar um neuro pediatra, queríamos investigar e descobrir o "porque" das coisas. Estamos nesse processo e tentativa há um ano, já ouvimos neuros, psicólogos e psicopedagogos, infelizmente aqui em Caxias do Sul, (não posso generalizar) mas nos profissionais que fomos nos pareceu claro um despreparo para lidar com o que nosso filho vinha apresentando, o atendimento está meio programado no piloto automático e a resposta é: 'medicamentos!!" não que isso seja descartado, mas precisamos de um diagnóstico mais preciso ou o mais próximo possível do real, fomos então consultar profissionais de Porto Alegre e foi como se uma luz acendesse em nós, uma neuro pediatra muito capacitada e experiente nos indicou caminhos, nada rígido e tão pouco um diagnóstico preciso foi apresentado até agora, pois o comportamento do Enzo não se encaixa em nada 100%, ou seja, ele tem algumas atitudes que se encaixam no espectro autista (asperger) por exemplo, mas por outro lado sua afetividade e sua autonomia não se enquadram nesse diagnóstico. Seguimos investigando e procurando respostas, estamos sendo assistidos por duas profissionais da Porto Alegre e uma daqui, pessoas nas quais acreditamos e percebemos um conhecimento que vai além dos livros. Já se pensou em tudo e de tudo: transtorno de ansiedade, asperger, transtorno por separação (nesse caso da mãe) por toda a sua vivência intra uterina e pós concepção que foi traumática e marcante, já pensamos em hiperatividade, enfim muitas coisas foram cogitadas, mas nada concluído. Ele tem uma memória invejável, se apropria do conhecimento com uma facilidade gigante, mas essa memória também tem seu lado negativo, pois parece que ele reviveu o trauma do abandono inconscientemente ao ficar na escola, desde lá ele não tolera frustrações, por vezes ele parece um menino sem limites, mas não é, (pausa, suspiro...). Já enfrentamos algumas situações de difícil manejo com ele em lugares públicos ou mesmo em casa, mas preciso e devo lhes contar: O AMOR SALVA, CURA E RESTAURA ELE E NÓS, e por mais que eu já tenha escrito, é aqui que inicio meu texto de verdade, é aqui que começo escrever as palavras que me norteiam e que me transformam todos os dias. Ainda não sabemos bem por onde ir, para onde ir, mas temos certeza que estamos a caminho do melhor, tenho ao meu lado um marido e pai maravilhoso que aprende, cresce e se apropria comigo das coisas que a vida nos lança, sou imensamente grata pela família que tenho, todos (avós, tios, primos...) amam incondicionalmente meus filhos e isso é tudo. O Enzo é um menino incrível, muito feliz e amado, nos ensina todos os dias, nos dá lições que nunca aprenderíamos sem ele, me motiva particularmente a ser uma pessoa melhor. Ouvi isso de uma das profissionais envolvidas conosco nesse processo todo: "talvez ele não tivesse se desenvolvido tão bem até aqui, se não fosse o amor, a dedicação e os estímulos dados a ele por vocês..." e mais: "penso eu que vocês o ""salvaram"" de um possível autismo, e as lacunas existente nele agora foram constituídas e estruturadas antes dos oito meses, antes de vocês o tê-lo". Guardei comigo a parte do AMOR, pois sei bem que atrás ou dentro dele está todo o resto. Não quero  pensar que o salvamos de nada, mas que o amor salvá-nos de tudo. Este ano eu ia reabrir meu atelier, escrever meus livros, fazer minhas ilustrações, voltar a dar aulas, voltar a dançar, sair mais, escrever mais, desenhar mais... e cá estou eu AMANDO mais, aprendendo mais, me dedicando mais a missão do momento, sou dessas que encaro as coisas de peito aberto, choro sim, para aliviar o peso das cargas, mas não enfraqueço e muito menos desanimo, pelo contrário, nas adversidades que me reconheço, acredito na letra de uma música do Milton Nascimento: "só o tempo vai me revelar quem sou", é isso: o tempo e a vida me revelando quem tenho que ser agora, por ora, por hoje, amanhã e depois é outra vida, outra página, outro livro, vou vivendo aquilo que o universo e que Deus me reservam, sem lamentos, sem reclames. Só o tempo e eles, os meus filhos podem revelar quem sou por agora, Enzo e Raquel não chegaram por acaso, vieram porque tínhamos um encontro marcado, o mais lindo de todos que já vivi.
Das coisas que tinha me programado para fazer, voltei somente para a dança, através dela me conecto comigo mesma, e percebo que não sou mais apenas uma, sou muitos. Sou tão grata por tudo o que tenho e por poder ser a mãe que sou, erro muito, acerto as vezes, aprendo muito, ensino as vezes. Lembro bem do dia que buscamos nossos filhos, lembro que era quase certo de que o Enzo seguiria pelo resto da vida tomando medicamentos para asma, bronquite, etc... pois ele não toma nada, raramente adoece, a gripe passa longe dele, é extremamente saudável, se alimenta muito bem, tem o sorriso mais largo e lindo que conheço e me faz amar da forma mais larga e linda que sei.  Pode ser que não seja nada e que emocionalmente as coisas se organizem e ele acabe superando tudo isso com um acompanhamento psicológico, pode ser que seja algo que precise de medicamento, pode ser que precise de tudo isso junto, pode ser isso ou aquilo, ou ainda outros issos ou nada disso......... Algumas pessoas me disseram que ele pode ser uma criança índigo, estudando isso também....... Não tem sido fácil viver com esse turbilhão de coisas, mas não me lembro ter pedido facilidades nessa ou em outra vida, me recordo de pedir felicidades, e com infelicidades no meio, sou muito feliz! 

O Lado B da Vida









Tarefa nada fácil preservar e estimular os sorrisos e o brilho nos olhos dos filhos, esse jeito saudável e alargador, além de ser um presente de Deus e do universo, tem o dedo de mãe e de pai, ou melhor, tem o corpo e a alma dos pais. Meus filhos raramente ficam doentes, acho que em 2015 fui apenas uma vez num plantão médico por causa de uma alergia do Enzo... sorte? Pode ser, um pouco, mas são dias e dias de cuidado com a alimentação, com o brincar, com o saber e viver de todos nós.
Caminhamos pela grama descalços, sentimos seu toque suave, seu frescor e esquecemos a trabalheira que deu e que dá para mantê-la assim. O universo, além de prover, ele sopra, mexe, remexe, conspira e nos carrega pra muitos caminhos, não vivemos e nem podemos viver a revelia de tudo, o amor, a força, a união, a felicidade não caem do céu bem encima da gente!  Lemos um livro e avaliamos o final, vemos uma bela casa construída e pensamos o quanto deve ser bom e "melhor" viver nela. Enxergamos o lado A da vida de alguém e pensamos: "que P E R F E I T A, como Deus e o universo foram  generosos com ela". A gente tem por costume esquecer do caminho e julgar só a chegada... Recebo alguns emails de pessoas que nem conheço pessoalmente, a maioria delas me conhece pelas redes sociais. Antes do final do ano recebi um que me parabenizava pelos filhos, pelo jeito de eu levar a vida, etc e etc. Li umas cinco ou seis vezes a palavra "perfeita", acrescida das palavras vida e maternidade, fiquei pensado nesse "resultado final" da vida que a gente compartilha com o mundo por aqui e por ali. Pois bem, pra se chegar a ele dou conta de muito trabalho, a vida e a maternidade não são perfeitas, mas me trazem resultados felizes, e pra se chegar neles... ah, quanto caminho para percorrer. Fazem três meses que não tenho nem faxineira pra me ajudar com a casa, a minha foi morar em outra cidade, ainda não consegui substituí-la. Eu lavo, estendo, passo, varro, lavo, seco, limpo, esfrego, lavo, estendo, passo, cozinho, limpo outra vez, recolho cocô de cachorro lá fora, organizo brinquedos, organizo papeis, cuido do jardim, cuido do pomar, cuido dos filhos, cuido dos cachorros, cuido de mim,cuido dos outros, cuido da vida... tudo isso com a ajuda do marido (que também trabalha fora).  As vezes olho para o cesto de roupas e acho que nunca mais vou conseguir esvaziá-lo, corro atrás dos filhos, tento brincar o máximo possível, ensiná-los os valores importantes, nutrí-los de saberes e de vivências sociais, culturais, artísticas e humanas, todos os dias tem bronca, as vezes bem séria,  as vezes nem tanto, e é um tal de: ajunta aqui, guarda ali, pega lá, escuta a mãe, escuta o pai, ESCUTA O OUTRO, escuta a vida, põe reparo nela e em todos que te rodeiam: humanos, animais, vegetais e tais... é bem assim que é o lado B da vida: de LUTA.








Lembro quando mostrei o filho menor comendo sozinho pela primeira vez, uma foto linda, feliz e emocionante, pois é, mas pra se chegar ali foram inúmeras tentativas, com choros, com incentivo, com risos, com bronca, com limpa aqui e acolá, e esse processo continua: ajuntando arroz, farelo e sucos derramados no chão... nada fácil essa maternidade, nada de perfeitos esses pais que choravam juntos por não conseguirem tirar as fraldas do filho que já estava com três anos, sem contar o acompanhamento no processo escolar da filha, nas dores que a infância traz, nas escolhas difíceis que são necessárias, nas horas de sono perdido, na batalha que é educar os filhos para o bem deles, dos outros, para o nosso bem e do planeta, pois é, parece perfeito a mãe fazer pão, comida saudável, correr pra feira as 6 da manhã, cuidar da horta e do pomar, mas há os "entretantos" e são tantos. Há poucos dias fiz picolé de manga, abacaxi e limão, ficaram lindos e deliciosos, todos amaram, fiz com uma afeto enorme e com aquela vontade de ser feliz (necessária pra nos manter vivos), mas lembro de olhar para toda aquela sujeirada na cozinha e pensar: seria bem mais fácil ir ali no Pedro (mercadinho perto de casa) e comprar tudo prontinho, mas não é assim que sou, gosto do fazer, gosto que meus filhos e marido façam, construindo juntos sabemos avaliar melhor e com mais sabedoria o quanto viver conforme algumas escolhas não é tarefa fácil. A vida aqui anda a mil por hora, as vezes o coração tá na boca, as borboletas no estômago, mas outras vezes a lágrima está nos olhos, a dor está no corpo e na alma, é aí que a vida pega, é aí que de verdade faremos a prova, o teste de resistência pra se viver nesse mundo de meu Deus. Aprendi a viver de peito aberto, sem muito descanso, colocando reparo nas lindezas que se manifestam no caminho e tentando driblar as feiuras que fazem parte da nossa condição humana. Sim, eu tenho filhos lindos, bem educados, inteligentes, sensíveis, mas é luta diária tentando passar pra eles o que realmente importa... sim eu tenho uma casa boa, iluminada, feliz, mas é luta diária de acordar cedo e dormir tarde... sim, eu tenho um marido parceiro, amigo e amante, mas é luta diária para manter isso vivo... sim eu amo cozinhar, inventar, fazer pão... mas é luta diária de reinventar tempo pra isso... sim eu crio, pinto, desenho, restauro, construo com e para os filhos ou sem eles e sem ser para eles, mas é luta diária.







Precisei abrir mão de algumas coisas pra me entregar a maternidade, a educação dos filhos e a casa, não me arrependo de nada, não lamento nada, eles estão bem, todos estamos bem, nesse ano volto a fazer algumas coisas que deixei pra trás, e volto mais feliz, com mais bagagem, mais vontade, com mais sabedoria e com mais amor. É isso, a vida tem tantos lados: A, B, C, D, somos muitos em um só, somos o resultado das escolhas feitas por nós e daquelas que nem podemos escolher, só viver... e vivemos tantas coisas: perfeitas ou não, felizes ou não...ainda assim VIVEMOS, não tem outro jeito, eu danço os ritmos que o universo me dá, mas saibam: faço minhas melodias, meu ritmo, luto, luto e luto... não fico aqui sentada esperando a vida passar e me trazer a felicidade numa bandeja de prata! E justamente a maternidade foi um dos processos mais difíceis, foram longos dias de três anos esperando meus filhos chegarem (nascerem).








Feliz tudo pra vocês tudo!



CHEGAR É NASCER





Sim, chegada é nascimento, (re) encontrar os outros é fazer nova família.
Sempre que se chega em um novo lugar-casa-gente-espaço o peito se despolui da poeira antiga, de ranços passados. Dentro da palavra chegar cabe tantas coisas, ela tem peso, altura e largura que abraça, é uma palavra corpo. Meus filhos não nasceram de mim, mas chegaram pra mim e chegar é se ver de perto e se ver de perto pela primeira vez é nascer um pro outro. São meus filhos desde o dia que nasceram meus, e minha família se fez mesmo nascendo longe, porque a chegada estava próxima, bem perto. É difícil definir com clareza quantas possibilidades de família existem e "convencer" os outros de que você pariu seus filhos mesmo estando ausente no dia do parto.  
Quando vi meus filhos pela primeira vez, senti uma dormência no corpo, tal como dizem sentir as mulheres logo depois de parir, era a chegada deles em nossas vidas. Assim como se faz força para dar a luz, meu corpo fez força, minha alma fez força, em cada etapa do processo de adoção, em cada entrevista com a psicóloga e a assistente social, fiz força durante três anos: meus olhos se esforçavam para visualizar como seriam meus filhos: cor do cabelo, dos olhos, da pele, da boca, como seriam suas mãos, seu olhar, seu tamanho, o volume da voz, quantos anos teriam quando CHEGASSEM pra nós, e esperar por essa CHEGADA foi o maior esforço de todos, era gravidez sem data e nem proximidades marcadas, era espera sem poder contar o tempo, eu e o marido achávamos o tempo um "deus" malvado,  e precisamos fazer força até para nos mantermos unidos como casal, a vida pedia pra gente andar e o queríamos era voar. Sempre tínhamos pressa de que amanhã chegasse, e que hoje já fosse ontem, era um esforço tremendo respeitar o tempo........... e quando chegou a hora do parto, depois de ver as carinhas dos filhos, o corpo amorteceu, o AMOR TECEU. 
Definir família é tarefa singular que depois vira plural, tantas vezes precisamos juntar pedaços de nós por aqui e por ali para só depois saber quem somos e quem são os nossos pares e ímpares, vamos juntando e ajuntando tanta coisa e tanta gente pelo caminho. 
Os laços consanguíneos nem sempre são os mais fortes, e também não são, para muitos, compromisso de amor e zelo. Não preciso lhes contar tudo o que meus filhos passaram com seus pais biológicos, mas posso lhes dizer que muitas vezes os enxerguei nas lágrimas dos nossos pequenos. Nossa filha nos conta de algumas lembranças doloridas que tem, nós pais: filtramos os fatos, atribuindo-lhes uma escala de valores que vai do que é banal até o que é imprescindível,  ela tem testemunhos e as vezes sussurra coisas no meu ouvido, como se me dissesse: só vou contar isso pra ti... acho que dói menos. Não costumamos falar dessas coisas, elas nem cabem mais em nós, mas se ela deseja, e cada vez foi desejando menos, falamos, sabemos que deve passar, basta tempo e as vezes silêncio. Em nenhum momento concordamos com ela quando acha que nunca foi amada ou cuidada quando morava com seus pais biológicos, pelo contrário, lhe contamos o quanto somos gratos por eles terem dado a ela e ao irmão o dom da vida, porém, internamente sabemos que foi só isso que fizeram, nós agora é que somos a FAMÍLIA deles, pertencemos uns aos outros num amor sem fim, e eles, meu filhos,  resilientes que são, têm mais espaço para felicidade do que pra tristeza.
Existem tantos lugares dentro e fora da gente, nos desapegamos de nós mesmos com tanta frequência que nem nos damos conta, somos família e deixamos de ser conforme o que vamos vivendo, conforme os encontros que temos com gente, bicho e lugar. Nesse construir e desconstruir da família, um mundo de coisas acontecem, saímos e entramos no olho do furacão incansáveis vezes, e aos pedaços ou inteiros vamos sinalizando nosso caminho, fundando placas que nos direcionam ora pra cá, ora pra lá, ora pra frente, ora pra trás....... sem deixar de olhar as placas alheias e as novas possibilidades de escolhas.  É pela desordem que organizamos a vida, é o universo que provê, sem esquecer que: ele não dá, mas devolve! O cenário da vida pode mudar muitas vezes, nós (os atores) também. Foi isso que fiz depois de me dar conta de que engravidar era palavra bem maior e que significava mais do que ter um filho no ventre, a adoção foi um recomeço sem medo, com a expectativa  e a certeza de que era esse o caminho, era a escolha mais bonita, mais verdadeira e que iria nos levar ao encontro dos nossos filhos. E como todo o recomeço, a adoção nos trouxe viço novo, amor novo, conceitos novos, e se assim posso nomear, nos trouxe: espiritualidade nova, novos guias, orixás, santos,  entidades, um novo jeito de ver e sentir Deus, um novo sopro de força, e a gratidão por entender que o mundo tem seus mistérios. Não salvamos nossos filhos de nada, nem tão pouco fizemos caridade, a CHEGADA deles foi como um abraço forte depois de de sentir muita dor. 
Sou tão grata pelas possibilidades que a vida nos dá de construir a família que a gente ama. 
Somos rios de encontros, somos ávidos, somos tantos e com tantas possibilidades......... encurtar-nos com definições de família é como podar as possibilidades de amar!


Dos Preconceitos Com a "Dona de Casa"







Escrevo sobre as coisas que acontecem na vida, pois elas nos ajudam a entender esse mundo e a partir delas podemos reconstruir nosso conceitos... ou não. 
Eis que numa mesa com amigos e conhecidos, um deles diz: "e então, vamos conversar sobre carros ou sobre direito?" Isso porque estávamos ali entre homens que trabalham no ramo automobilístico,  suas esposas que são advogadas e eu da área das Artes, no momento "dona de casa". Me pronuncio: por que não podemos falar de Arte? E outra pessoa responde com um sorriso em grau de deboche: "da arte de ficar em casa?" Pronto, ele acabava de chegar exatamente onde eu queria, começamos então (todos) a discutir sobre a "arte de ficar em casa", de ser "dona ou dono de casa". No meio da conversa surgiu até o nome Amélia, a pessoa que o citou talvez nem saiba que esse termo já é até verbete de dicionário, mas provavelmente conheça o samba de  Ataulfo Alves e Mário Lago. Amélia há tempos deixou o posto de substantivo próprio e passou a ser substantivo comum, pois reconhecidamente se trata de uma "moça sem a menor vaidade" vivendo à sombra do marido, da família e da casa, tudo o que não sou, não pretendo ser e tenho certeza que muitas outras mulheres não são e nem pretendem ser. Outra pessoa diz: "ficar em casa. quanto retrocesso Rosane!O assunto foi tomando corpo e constatei que algumas das mulheres pensavam de forma mais machista que os homens, pois em suas falas ficava claro que "mulher de verdade" é aquela que sai de casa todos os dias pra encarar o trabalho lá fora, deixa os filhos na escola, com a babá ou etc, para poder sustentar a família de igual pra igual como o marido, e ainda chega em casa e encara seu terceiro turno: tarefas do lar, filhos... Sendo que a mulher que fica em casa "tem mais tempo livre". Percebi que estávamos na escala da categorização de pessoas. Se essas eram as "mulheres de verdade" as outras então seriam as de mentira? Mas a pior fala ainda estava por vir e veio também de uma mulher: "na verdade a mulher que fica em casa trabalha muito, até mereceria receber um salário por isso, mas acontece que fica """emburrecida"""", suas atividades passam a ser lavar, passar, cuidar dos filhos, fazer comida, ajudar com as tarefas da escola, bla, bla, bla e acabam esquecendo do mundo lá fora e até mesmo de si mesmas" e ainda acrescentou algo mais ou menos assim: "sem falar que ficam em casa as que são muito ricas e têm esse """privilégio""" ou aquelas que são muito pobres e não têm emprego ou qualificação para trabalhar fora". E a pessoa que deu início a esse enredo todo falou: "por isso que eu disse se íamos falar de carros ou direito", querendo dizer que: os assuntos de "casa" são desinteressantes. Estávamos em nove pessoas, quatro delas se posicionaram dessa forma, ainda bem que eu e as outras quatro nos posicionamos bem diferente disso. Perguntei aos mais entusiastas ao machismo (confesso que fiz isso de maneira esnobe)  se conheciam uma porção de livros que eu já havia lido, citei algumas autoras mulheres: Carolina Maria de Jesus, Alice Ruiz, Chimamanda Adichie, Adélia Prado, Marina Colasanti, Simone de Beauvoir, entre outras, perguntei se já tinham visto as exposições de arte que eu vi, se já tinham ido a tantos espetáculos de dança e teatro quanto eu fui, se já tinham parado pra olhar pro lado e ver que o mundo é bem maior do que imaginamos ou desejamos... arrematei: e pra aqueles que acham que quem fica em casa não trabalha, convido a passar um dia comigo, e já adianto: cedinho da manhã recolhemos os cocôs dos cachorros lá fora, que são muitos, grandes e fedidos, e a propósito fazemos isso com um sorriso no rosto!!
É importante tomar cuidado para evitar certas posturas de culpabilização feminina, nem todas as mulheres que se dedicam aos afazeres domésticos e outras atividades caseiras tem postura "machista", há muitas mulheres com carreiras executivas que ainda enxergam a vida através das lentes patriarcais, e acabam sendo mais submissas do que as "donas de casa", e ao contrário do muitos pensam:  cuidar dos filhos, da comida, das coisas da casa, não emburrecem ninguém, o que emburrece é manter vivo um conceito de que só se pode ser feminista, politizada, inteligente, dona de si quem trabalha fora, emburrece o desconhecimento de tudo o que envolve as tarefas domésticas e das atividades com os filhos pequenos. Há um envolvimento do tamanho do mundo e com o mundo ao se desempenhar todas essas funções.
Há algum tempo mulheres foram queimadas numa fábrica, mulheres não tinham o direito ao voto, nem aos estudos, muito menos ao trabalho fora de casa. Hoje já se conquistou parcialmente a igualdade de direito entre os sexos. No mercado de trabalho, na política, na economia, na sociedade, as mulheres são mais valorizadas, e as tarefas domésticas, que antes eram delegadas somente às mulheres passou a ser também tarefa dos homens, aplausos de pé para tudo isso, e sabemos o quanto ainda precisamos vencer preconceitos machistas e apequenados a respeito das mulheres. Já que se venceram tantas coisas por que não superamos esse novo/velho conceito de que se eu varrer a casa, cuidar dos filhos, fazer comida estarei traindo o feminismo, deixarei de ser ativista, ficarei burra, escolher ficar em casa (no meu caso por um tempo) não é retrocesso é um direito de toda e qualquer pessoa (homem ou mulher) que assim puder e desejar fazer. Acredito que o ativismo se dá de dentro pra fora, seja em qual esfera for, suas vertentes se estendem e se ampliam dentro ou fora de casa. Trabalhei fora desde meus 17 anos, estudei, criei, fiz muitas coisas, deixei marcas no mundo, nas pessoas... pretendo voltar, tenho projetos sendo executados nas madrugadas livres, estou com 44 anos, escolhi ficar um tempo em casa com os filhos, tenho um marido que trabalha fora e quando chega em casa trabalha mais ainda me ajudando com todas as atividades que envolvem uma casa, uma família, não sou obrigada a escutar: "que retrocesso Rosane!" Estamos num momento em que se discute muito a constituição familiar, essa defendida por muitos: papai (homem), mamãe (mulher) e filhinhos não é a única e nem nunca será, sou a favor da FAMÍLIA/AMOR seja ela composta de qualquer forma, gênero, classe, raça e principalmente construída com bases LIBERTADORAS. Lembram das mulheres que atearam fogo em seus sutiãs? Eu aqui da minha casa, apoio de corpo e alma essas labaredas, e por isso mesmo me dou o direito da ESCOLHA, estou aqui, por um tempo, formando cidadãos que respeitam a vida, o planeta, as pessoas... ao mesmo tempo estudo muito, leio muito, escrevo muito e preciso falar: estou aprendendo tanto quanto quando eu saía de casa todos os dias as sete horas da manhã. Não precisaria dizer isso mas quero dizer: meus filhos são muito inteligentes, têm posturas sensíveis frente a vida, são expressivos e felizes, meu filho menino brinca de casinha junto com minha filha menina e ele ajuda a cuidar das bonecas, limpa a casa, busca os filhos na escola, tudo isso brincando e APRENDENDO. Meus filhos me reconhecem como alguém admirável, que pinta, desenha, escreve, fotografa e cuida deles, dos bichos e da casa, sabe que trabalhei fora sempre, admiram tudo o que já fiz e sabem de tudo o que ainda pretendo fazer. Os dois observam o pai ajudando nas tarefas domésticas com a maior naturalidade, como deve ser, não há espanto algum ao vê-lo desempenhando papéis ditos como de "mulherzinha". Brincamos, lemos e contamos muitas histórias, cantamos, dançamos, escrevemos, escutamos, choramos, damos risada, pintamos, desenhamos, criamos, cuidamos uns dos outros, dos bichos, do pomar, da horta, vamos ao teatro, ao cinema, a mostras de arte, ao parque, limpamos, lavamos, cozinhamos, brigamos, pedimos desculpas, brigamos de novo, nos amamos, amamos os outros, trabalhamos... e assim vamos ateando fogo (aos sutiãs) de preconceitos e categorizações.






OUTRAS POSTAGENS