CHEGAR É NASCER





Sim, chegada é nascimento, (re) encontrar os outros é fazer nova família.
Sempre que se chega em um novo lugar-casa-gente-espaço o peito se despolui da poeira antiga, de ranços passados. Dentro da palavra chegar cabe tantas coisas, ela tem peso, altura e largura que abraça, é uma palavra corpo. Meus filhos não nasceram de mim, mas chegaram pra mim e chegar é se ver de perto e se ver de perto pela primeira vez é nascer um pro outro. São meus filhos desde o dia que nasceram meus, e minha família se fez mesmo nascendo longe, porque a chegada estava próxima, bem perto. É difícil definir com clareza quantas possibilidades de família existem e "convencer" os outros de que você pariu seus filhos mesmo estando ausente no dia do parto.  
Quando vi meus filhos pela primeira vez, senti uma dormência no corpo, tal como dizem sentir as mulheres logo depois de parir, era a chegada deles em nossas vidas. Assim como se faz força para dar a luz, meu corpo fez força, minha alma fez força, em cada etapa do processo de adoção, em cada entrevista com a psicóloga e a assistente social, fiz força durante três anos: meus olhos se esforçavam para visualizar como seriam meus filhos: cor do cabelo, dos olhos, da pele, da boca, como seriam suas mãos, seu olhar, seu tamanho, o volume da voz, quantos anos teriam quando CHEGASSEM pra nós, e esperar por essa CHEGADA foi o maior esforço de todos, era gravidez sem data e nem proximidades marcadas, era espera sem poder contar o tempo, eu e o marido achávamos o tempo um "deus" malvado,  e precisamos fazer força até para nos mantermos unidos como casal, a vida pedia pra gente andar e o queríamos era voar. Sempre tínhamos pressa de que amanhã chegasse, e que hoje já fosse ontem, era um esforço tremendo respeitar o tempo........... e quando chegou a hora do parto, depois de ver as carinhas dos filhos, o corpo amorteceu, o AMOR TECEU. 
Definir família é tarefa singular que depois vira plural, tantas vezes precisamos juntar pedaços de nós por aqui e por ali para só depois saber quem somos e quem são os nossos pares e ímpares, vamos juntando e ajuntando tanta coisa e tanta gente pelo caminho. 
Os laços consanguíneos nem sempre são os mais fortes, e também não são, para muitos, compromisso de amor e zelo. Não preciso lhes contar tudo o que meus filhos passaram com seus pais biológicos, mas posso lhes dizer que muitas vezes os enxerguei nas lágrimas dos nossos pequenos. Nossa filha nos conta de algumas lembranças doloridas que tem, nós pais: filtramos os fatos, atribuindo-lhes uma escala de valores que vai do que é banal até o que é imprescindível,  ela tem testemunhos e as vezes sussurra coisas no meu ouvido, como se me dissesse: só vou contar isso pra ti... acho que dói menos. Não costumamos falar dessas coisas, elas nem cabem mais em nós, mas se ela deseja, e cada vez foi desejando menos, falamos, sabemos que deve passar, basta tempo e as vezes silêncio. Em nenhum momento concordamos com ela quando acha que nunca foi amada ou cuidada quando morava com seus pais biológicos, pelo contrário, lhe contamos o quanto somos gratos por eles terem dado a ela e ao irmão o dom da vida, porém, internamente sabemos que foi só isso que fizeram, nós agora é que somos a FAMÍLIA deles, pertencemos uns aos outros num amor sem fim, e eles, meu filhos,  resilientes que são, têm mais espaço para felicidade do que pra tristeza.
Existem tantos lugares dentro e fora da gente, nos desapegamos de nós mesmos com tanta frequência que nem nos damos conta, somos família e deixamos de ser conforme o que vamos vivendo, conforme os encontros que temos com gente, bicho e lugar. Nesse construir e desconstruir da família, um mundo de coisas acontecem, saímos e entramos no olho do furacão incansáveis vezes, e aos pedaços ou inteiros vamos sinalizando nosso caminho, fundando placas que nos direcionam ora pra cá, ora pra lá, ora pra frente, ora pra trás....... sem deixar de olhar as placas alheias e as novas possibilidades de escolhas.  É pela desordem que organizamos a vida, é o universo que provê, sem esquecer que: ele não dá, mas devolve! O cenário da vida pode mudar muitas vezes, nós (os atores) também. Foi isso que fiz depois de me dar conta de que engravidar era palavra bem maior e que significava mais do que ter um filho no ventre, a adoção foi um recomeço sem medo, com a expectativa  e a certeza de que era esse o caminho, era a escolha mais bonita, mais verdadeira e que iria nos levar ao encontro dos nossos filhos. E como todo o recomeço, a adoção nos trouxe viço novo, amor novo, conceitos novos, e se assim posso nomear, nos trouxe: espiritualidade nova, novos guias, orixás, santos,  entidades, um novo jeito de ver e sentir Deus, um novo sopro de força, e a gratidão por entender que o mundo tem seus mistérios. Não salvamos nossos filhos de nada, nem tão pouco fizemos caridade, a CHEGADA deles foi como um abraço forte depois de de sentir muita dor. 
Sou tão grata pelas possibilidades que a vida nos dá de construir a família que a gente ama. 
Somos rios de encontros, somos ávidos, somos tantos e com tantas possibilidades......... encurtar-nos com definições de família é como podar as possibilidades de amar!


OUTRAS POSTAGENS